A caixa

Ao olhar-se atenta ao espelho “o lenço rosa, de seda”, pensou, objecto esquecido pelo tempo, sonhou-o na noite anterior a esvoaçar entre grinaldas de flores campestres. “Onde estará?”, peça guardada há tantos anos quanto a imagem já esquecida da sua doadora – ignóbil tempo de pó e memórias. “Quem?”
Subiu ao sótão ligeira, “A caixa!”, lembrou-se enquanto saltava os degraus, procurou-a com prazer e encontrou-a com alegria, uma caixa de cartão e flores – rústica – oferta da mãe quando fez doze anos, tempo apressado. Abriu-a com delicadeza, o pó ligeiro brilhava ao sol oblíquo, abriu a caixa – caixa de Pandora? Objectos esquecidos ou guardados na memória ou arrumados longe dos sentimentos agregados. Pandora? Os olhos de medo? Uma fotografia, em primeiro plano uma praia dourada, recorda-se qual, a qual teimou esquecer, e a sorrir, quem sempre recusou recordar. A caixa, de flores azuis e fundo rosáceo, lembranças e tremores, alegrias e paixões e desamores – Pandora olha-a? Pousou a caixa no chão, com delicadeza ou tremor, e desceu as escadas expectantes com indecisas passadas. A caixa, no chão e desarrumada, tampa voltada para cima a um canto, o conteúdo, umas fotografias debotadas e desarrumadas – o reflexo de desorganizadas sensações e emoções? O silêncio da casa, o melódico entardecer dos besouros – Pandora sussurra? Ainda o suave aroma em suspenso do perfume doce, e já a porta batia na saída. Esquecido o lenço – Pandora esquecida na caixa?
O trânsito distrai e o pensamento divaga, a Margarida aniversariante, a amiga desde os treze anos, precisão: dois dias depois do seu aniversário, quando choveu a única vez naquele mês de Verão. A Margarida aniversariante espera-a e olha-a e alegram-se, cumprimentos efusivos e da ocasião. A mesa corrida rodeada de convivas em alegre algazarra, a Margarida e o namorado e os amigos regulares e a prima, desconhecida até então, com o namorado aloirado e de costas e distraído. Circunda a mesa e senta-se defronte o aloirado que agora a olha atento – Pandora traiu-a? Ele olha-a, atento ou apenas curioso? A fotografia da caixa, animada – e a praia, onde está? Falta-lhe a areia, qualquer chão, qualquer segurança de si. O batom uma mordaça invisível, lavabos ao fundo, os membros inferiores preguiçosos e imóveis e fracos – Pandora prende-os? Fugir de quê? Pensar sem sentir, é possível? Separar a atenção do coração descompassado, pêndulo cheio de inércia ansiosa. Pandora, para onde me levas? Devolve-me à terra, que este silêncio aguçado alfineta-me as entranhas, a imobilidade e o silêncio – a penitência do medo?
(…)

1 comentário:

Ana Paula disse...

Não seremos todos uma caixinha de Pandora?!
Intrínseco... todos se surpreendem com as memórias guardadas ou escondidas, que por vezes decidem brotar à luz do dia numa abertura conscienciosa ou desajeitada de um espaço chamado...inconsciente.
Somos todos Grãos de Areia neste imenso!!!
Beijinhos