um Regresso

Eis a razão pelo abandono deste blog:
Tenho em mãos um texto; não ouso dar-lhe outra designação porque, neste momento são apenas rascunhos encadeados, mas tarefa para a qual tenho propósito definido, se o engenho e a paciência me assistirem nas longas horas que me esperam. Este espaço de letras será, essencialmente, um caderno de anotações e partilha de angústias e entusiasmos e desilusões, inerências do processo criativo.

Mudança

A expectativa de mudança é um sentimento tão antigo quanto a própria humanidade, e pela sua observação, podemos mensurar o indivíduo e a sociedade. Mas na vida de caminhos que cada um escolhe, ou fazem escolher, há sempre cruzamentos e atalhos, e perante eles, sempre ansiamos a mudança, principalmente a alheia, a dos outros, que o nosso caminho, ainda que o reconheçamos sinuoso, é sempre mais difícil de mudar. E numa experiência de caminhos cruzados, que o Homem é um ser gregário por definição, as relações humanas tomam um papel central e fundamental mas de difícil gestão, pelo que a expectativa de mudança do outro é um constante desejo. E acreditamos nela, pelo que a desilusão é, normalmente, o sentimento resultante.

Flor de Pedra

O amor é um sentimento largo, que comporta o perdão e por vezes, talvez demasiadas vezes, transforma pedras em flores de pedra. Mas apesar da sua beleza, esta matéria inanimada e inerte não vingará, não se altera e fica sujeita à erosão dos elementos e do tempo. Medusa vencerá, e mesmo quando aparentemente é derrotada por um perdão trilhado entre os tortuosos caminhos dos sentimentos, deixa cravados os seus venenosos desencantos, até que a mão do tempo lhe dê outra forma.

Rumo

A sabedoria não é apenas o ter as respostas, é, principalmente, procurá-las e compreende-las. Mas ao Homem, ser de crónicas ilusões, não basta a reflexão e a verdade: sonha o impossível, anseia o improvável, e age conforme o medo.

A caixa

Ao olhar-se atenta ao espelho “o lenço rosa, de seda”, pensou, objecto esquecido pelo tempo, sonhou-o na noite anterior a esvoaçar entre grinaldas de flores campestres. “Onde estará?”, peça guardada há tantos anos quanto a imagem já esquecida da sua doadora – ignóbil tempo de pó e memórias. “Quem?”
Subiu ao sótão ligeira, “A caixa!”, lembrou-se enquanto saltava os degraus, procurou-a com prazer e encontrou-a com alegria, uma caixa de cartão e flores – rústica – oferta da mãe quando fez doze anos, tempo apressado. Abriu-a com delicadeza, o pó ligeiro brilhava ao sol oblíquo, abriu a caixa – caixa de Pandora? Objectos esquecidos ou guardados na memória ou arrumados longe dos sentimentos agregados. Pandora? Os olhos de medo? Uma fotografia, em primeiro plano uma praia dourada, recorda-se qual, a qual teimou esquecer, e a sorrir, quem sempre recusou recordar. A caixa, de flores azuis e fundo rosáceo, lembranças e tremores, alegrias e paixões e desamores – Pandora olha-a? Pousou a caixa no chão, com delicadeza ou tremor, e desceu as escadas expectantes com indecisas passadas. A caixa, no chão e desarrumada, tampa voltada para cima a um canto, o conteúdo, umas fotografias debotadas e desarrumadas – o reflexo de desorganizadas sensações e emoções? O silêncio da casa, o melódico entardecer dos besouros – Pandora sussurra? Ainda o suave aroma em suspenso do perfume doce, e já a porta batia na saída. Esquecido o lenço – Pandora esquecida na caixa?
O trânsito distrai e o pensamento divaga, a Margarida aniversariante, a amiga desde os treze anos, precisão: dois dias depois do seu aniversário, quando choveu a única vez naquele mês de Verão. A Margarida aniversariante espera-a e olha-a e alegram-se, cumprimentos efusivos e da ocasião. A mesa corrida rodeada de convivas em alegre algazarra, a Margarida e o namorado e os amigos regulares e a prima, desconhecida até então, com o namorado aloirado e de costas e distraído. Circunda a mesa e senta-se defronte o aloirado que agora a olha atento – Pandora traiu-a? Ele olha-a, atento ou apenas curioso? A fotografia da caixa, animada – e a praia, onde está? Falta-lhe a areia, qualquer chão, qualquer segurança de si. O batom uma mordaça invisível, lavabos ao fundo, os membros inferiores preguiçosos e imóveis e fracos – Pandora prende-os? Fugir de quê? Pensar sem sentir, é possível? Separar a atenção do coração descompassado, pêndulo cheio de inércia ansiosa. Pandora, para onde me levas? Devolve-me à terra, que este silêncio aguçado alfineta-me as entranhas, a imobilidade e o silêncio – a penitência do medo?
(…)

O meu problema

Deixei de gostar das pessoas, não de todas, mas de uma forma mais geral, de todas. Falta-lhes humanidade. Descobri que há pessoas inumanas, vejo-lhes os gestos e avalio-lhes o carácter e desconfio delas, não posso acreditar que sejam pessoas. Ou será que sou eu que estou enganado? Será que o problema deles é, afinal, o meu problema, estarei eu do lado errado?

Há pouco e quando conduzia o meu carro pela cidade, melancólico e distraído e num vagar prazenteiro, um condutor que presumo humano, ultrapassou-me com a sua viatura a alta velocidade e vi-o gesticulando na minha direcção, e imagino que palavras estava usando, imagino-lhe o tom e o volume e o nível linguístico, imagino-o por semelhança com anteriores situações. Não que me choque as palavras que eventualmente tenha usado, sei-as todas desde a adolescência, mas sempre ouvi dizer que o seu uso é uma forma de insulto ou desabafo por quem as usa. Não percebo o insulto, se o era, nem a sua necessidade, nem acredito na existência de qualquer necessidade que justifique o uso. Também não creio que fosse um desabafo, era-me estranho aquele ser, e eu, talvez um bichinho do mato, não costumo desabafar com desconhecidos, não compreendo diferente conduta nos outros.

Cresci a acreditar que as pessoas tinham um sentimento humano, fraterno, forte e poderoso em defesa da condição da espécie. Cresci a ver pessoas diferentes, em respeito. Parei de crescer, e foi esse o mal. Hoje estou a envelhecer, é sempre isso o que é o viver, e estou, em todos os dias em que penso e vejo e suspiro, a endurecer os meus conceitos, tal como os meus púberes ossos que se estão a tornar numa carcaça com pouca mobilidade e cuja capacidade plástica se transforma lentamente em elástica, já não há muito a fazer, volta sempre ao mesmo.

Ontem cruzei-me com um indivíduo sem ouvidos. Eu estava a trabalhar e ele abordou-me sobre um processo. Fê-lo com uma sobranceira arrogância, fê-lo com palavras que dificilmente e humildemente acredito que as ouvisse para si mesmo. Eu, um máquina em forma de humano e forrado com uma capa que parece uma farda, remeti-me a umas parcas explicações que, por uma insuficiência de volume que não creio possuir, ou por incapacidade auditiva ou incapacidade de processamento do meu interlocutor, não resultou em qualquer esclarecimento do assunto, talvez as minhas palavras, não sei em que decibéis ou comprimento de onda vibratória são transmitidas, lhe tenha chegado distorcidas, que a reacção desse espécime foi o insulto. Disse-me para ir para um sítio que, sinceramente, não ouso aqui reproduzir a sua designação ou localização anatómica. Passados tantos dias, ainda não percebi a reacção do espécime. Acho que sou lento a pensar e o problema é meu.

Continuo sem perceber o meu problema. Pensei em consultar um psicólogo ou um psiquiatra, mas da última vez que entrei numa sala de espera de um desses considerados especialistas, esta estava cheia de pessoas que apresentam os problemas aos quais me sinto estranho e tento fugir. Saí desalmado e assustado como uma criança apanhada em flagrante quando vê o que não deve e esconde o rosto pela vergonha dos outros. Só recuperei as forças quando vi o sol a olhar-me, desconfio que preocupado, quem sabe se irritado pela minha ousadia. Continuo com o meu problema em avaliar e compreender as acções dos outros.
(...)

Génese

Em 2006 eu era autor de um blog (de igual nome a este) e em Outubro publiquei um artigo. Desde então que não escrevo qualquer texto de substância que à designação se preste. Esse último texto – um último suspiro? Pensei-o como um interregno, mas a sua duração ditou-lhe um fim, o fim de uma etapa, direi que ‘finou-se por morte natural’.

Há uns meses atrás publiquei no Twitter uma breve mensagem que, pela sua dimensão, sintetiza pensamentos que são expontâneos, mas a sua limitada dimensão, cento-e-quarenta caracteres, não permite explanar todas as linhas condutoras do tempo que porventura participa na realização dessa reflexão. Compreendi de imediato que esse imediatismo e síntese do pensamento é contrário à construção de um texto que se preze, que lhe falta talvez o corpo de longos e explicatórios substantivos e adjectivos ou outras formas gramaticais que lhe possam conferir clareza e consistência. Desisti do Twitter.

“Não posso deixar de perguntar: e de 2006 para cá?...” escreveu-me a Sandra, em meados de 2009.
Outros projectos, entre eles a formação académica, e concluída esta, o regresso às letras – um prazer sofrido: uma ausência necessária, que o processo criativo não é, de todo, um processo contínuo temporal e qualitativo.
Este será um espaço pessoal, é certo, que servirá para ensaios criativos, rascunhos, caderno de apontamentos. O que menos importa é o resultado, na viagem o caminho não é menos importante que o destino, e o sucesso uma consequência e não um fim. Um desígnio: que o prazer de ler seja proporcional ao meu imenso prazer de escrever.