O meu problema

Deixei de gostar das pessoas, não de todas, mas de uma forma mais geral, de todas. Falta-lhes humanidade. Descobri que há pessoas inumanas, vejo-lhes os gestos e avalio-lhes o carácter e desconfio delas, não posso acreditar que sejam pessoas. Ou será que sou eu que estou enganado? Será que o problema deles é, afinal, o meu problema, estarei eu do lado errado?

Há pouco e quando conduzia o meu carro pela cidade, melancólico e distraído e num vagar prazenteiro, um condutor que presumo humano, ultrapassou-me com a sua viatura a alta velocidade e vi-o gesticulando na minha direcção, e imagino que palavras estava usando, imagino-lhe o tom e o volume e o nível linguístico, imagino-o por semelhança com anteriores situações. Não que me choque as palavras que eventualmente tenha usado, sei-as todas desde a adolescência, mas sempre ouvi dizer que o seu uso é uma forma de insulto ou desabafo por quem as usa. Não percebo o insulto, se o era, nem a sua necessidade, nem acredito na existência de qualquer necessidade que justifique o uso. Também não creio que fosse um desabafo, era-me estranho aquele ser, e eu, talvez um bichinho do mato, não costumo desabafar com desconhecidos, não compreendo diferente conduta nos outros.

Cresci a acreditar que as pessoas tinham um sentimento humano, fraterno, forte e poderoso em defesa da condição da espécie. Cresci a ver pessoas diferentes, em respeito. Parei de crescer, e foi esse o mal. Hoje estou a envelhecer, é sempre isso o que é o viver, e estou, em todos os dias em que penso e vejo e suspiro, a endurecer os meus conceitos, tal como os meus púberes ossos que se estão a tornar numa carcaça com pouca mobilidade e cuja capacidade plástica se transforma lentamente em elástica, já não há muito a fazer, volta sempre ao mesmo.

Ontem cruzei-me com um indivíduo sem ouvidos. Eu estava a trabalhar e ele abordou-me sobre um processo. Fê-lo com uma sobranceira arrogância, fê-lo com palavras que dificilmente e humildemente acredito que as ouvisse para si mesmo. Eu, um máquina em forma de humano e forrado com uma capa que parece uma farda, remeti-me a umas parcas explicações que, por uma insuficiência de volume que não creio possuir, ou por incapacidade auditiva ou incapacidade de processamento do meu interlocutor, não resultou em qualquer esclarecimento do assunto, talvez as minhas palavras, não sei em que decibéis ou comprimento de onda vibratória são transmitidas, lhe tenha chegado distorcidas, que a reacção desse espécime foi o insulto. Disse-me para ir para um sítio que, sinceramente, não ouso aqui reproduzir a sua designação ou localização anatómica. Passados tantos dias, ainda não percebi a reacção do espécime. Acho que sou lento a pensar e o problema é meu.

Continuo sem perceber o meu problema. Pensei em consultar um psicólogo ou um psiquiatra, mas da última vez que entrei numa sala de espera de um desses considerados especialistas, esta estava cheia de pessoas que apresentam os problemas aos quais me sinto estranho e tento fugir. Saí desalmado e assustado como uma criança apanhada em flagrante quando vê o que não deve e esconde o rosto pela vergonha dos outros. Só recuperei as forças quando vi o sol a olhar-me, desconfio que preocupado, quem sabe se irritado pela minha ousadia. Continuo com o meu problema em avaliar e compreender as acções dos outros.
(...)

1 comentário:

Ana Paula disse...

Olá Luís (talvez não me soasse tão mal se dissesse Grão de Luz, rs, tontices!) bom regresso!
Fiquei agradavelmente surpresa quando vi o teu comentário dócil.
É bom poder reencontrar alguém que me apraz ler.
O teu texto, aviva-me sensações que também já vivenciei...enfim. Perfeitos ou imperfeitos, que fazer?! Se temos que conviver dentro desta redoma intoxicada, chamada Humanização!
Gostei muito de te reencontrar.
Bj